Não somos só nós

abril 23, 2020


Os dias correm lentamente, sempre da mesma forma, pelo mesmo ritmo cansado, cumprimos a verdadeira quarentena, com todos os seus 40 dias e mais alguns, sempre a somar.

Eu sei que não estou bem, eu sei que ele dá sinais e eu sinto que ela sente.

Eu sabia, tinha a certeza que alguma mazela isto lhe ia deixar mas ainda assim fui apanhada de surpresa.

Coração de mãe sabe tudo, coração de mãe tenta não ver.

Hoje o meu coração bate forte, bate de tal forma que sinto o peito dormente, acho que chora o que eu não chorei até agora. Porque coração de mãe também tem de ser forte quando eles não são.

Hoje a minha menina feliz esteve meia hora a chorar, primeiro de frustração, depois de raiva e por fim de tristeza, não sei ao certo qual das partes me doeu mais.


Estava tudo bem, brincamos, estivemos na ronha e do nada, amarra o burro, eu dei-lhe uns minutos, chamei-a, não respondeu, já estava a começar a fervilhar. Ainda não tinha entrado no quarto dela e já a ouvia a soluçar. Assustei-me, pensei que tivesse caído e se tivesse aleijado, percebi que não.

Mandou-me embora, com uma firmeza que eu andei de costas até à porta, com o coração baralhado e apertado. Sentada na cama chorava ela, em pé na porta chorava eu. Perguntei o que se passava, disse que queria que fosse embora. Respondeu que não estava magoada, que estava zangada, disse que tinha que respirar. Eu ali de pé a ver aquele acto de coragem, de auto controle, que tantas vezes lhe tento ensinar, não me parecia estar a funcionar.

Mas que raio deve uma mãe fazer?

Se entro no quarto não a estou a respeita, nem a ela nem à vontade dela, nem aos meus ensinamentos, nem mostro confiar nela, nem nada de nada. Se não entro não a estou a ajudar, não lhe dou afecto, não a consolo, sou uma merda no fundo.

Sentei-me na minha cama, no quarto ao lado e esperei, tentei respirar, senti-me no início de um ataque de pânico.

Ela entrou pelo quarto, ainda chorava.

Deus o que me doía o peito...e a alma.

Tentei ir ter com ela, retraiu-se.

Não consegui e com a voz a transparecer bem o que o resto não passava disse-lhe:

- Diz-me o que se passa, por favor, eu não te consigo ver chorar assim!



Foi como se tivesse saído de um transe dos infernos, percebeu que a estava a sentir.

Sentou-se no meu colo e disse-me:



- Eu sei que vocês estão fartos de mim.



...

...

...



Fiquei sem chão, como raio é que ela fica a achar isto?

Respirei.

Disse que nunca me iria fartar do meu maior amor.

Chorou mais 10 minutos agarrada a mim, embalei-a como naquela noite horrível de cólicas, acalmou-se e conversamos, muito.

Percebi que a ideia vem de ouvir que estamos fartos de andar a arrumar as coisas dela, é verdade, mas quando o dizemos, na maioria das vezes para o ar, nunca foi com aquela intenção, nunca seria.

Disse-me também que tem medo de nunca mais poder sair de casa, de ir à praia, de ir de férias, de estar com os avós e com os amigos. Que também não sabe se quer ir porque tem medo do vírus também. Ela quer a mãe e o pai, que estão o dia todo em casa mas que estão a trabalhar à vez, e que tem de manter a casa limpa e fazer as refeições e tratar da roupa. Ela sabe que é assim, entende isso mas ainda assim não deixa de querer, está no seu direito. Não quer ter de fazer trabalhos de casa, não quer ficar sem fazer nada, quer passear mas não sabe se quer ir à rua, quer ver gente mas tem noção que existe perigo. Ela tem 5 anos e um bom poder de encaixe para muita, muita coisa. Mas tem 5 anos.



Passei o resto do dia em exclusivo para ela, não cozinhei, não limpei, não arrumei nem trabalhei.

Pensei seriamente se devia ou não partilhar isto convosco, escrevi e apaguei uma 3 vezes esta mensagem. Decidi que lhe devia isto, a ela e a mim.

Foda-se foi um dia duro, pela tristeza dela, pelas palavras que me disse, pela conversa sem respostas que tivemos e por este sentimento de impotência que sinto agora porque sei que de pouco ou nada serviu, ela precisa de uma certeza que eu não tenho e que não lhe posso prometer.

Todos estes dias me preocupei com o impacto disto na vida dela, todos os dias lhe pergunto se está bem, se quer dividir alguma angustia comigo, todos os dias me diz que está bem, diz e explica, faz perguntas quando não sabe, ouve, guarda informação, não estava nada à espera disto, não hoje, não desta forma.



Por hoje passou, amanhã não sei como será.

Fiquem atentos nos vossos porque alguma coisa esta pandemia vai deixar nestas crianças.

Cuidem deles e de vocês não só física mas psicologicamente, principalmente psicologicamente.

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