#Ele foi embora

abril 21, 2020


Ainda antes de abrir os olhos, ele sabia que ela já estava acordada, que olhava para ele, sentia na alma a luxúria que a pele dela abrigava e perguntava-se como raio teria ele conseguido encontrar aquela mulher só para ele, ainda não tinha caído em si, não percebia porque raio ela o seguia como sombra em todas as suas loucuras, nem porque é que lhe disse que sim, nem porque é que ainda o deseja assim. Sabia que ela já o sentia acordado, sabia que o calor dela se ia juntar ao seu, sabia também que iria chegar atrasado de novo, caramba, não lhe dava jeito nenhum mas abriu os olhos para a ver sorrir com aquele ar malandro e inocente que foi tão rápido a aparecer naquela cara como a sua mão foi a descer-lhe do peito. Ali, naquele segundo ele soube tanto quanto ela, que os seus corpos eram dois mas tudo o resto era um, talvez fosse por isso que lhe custava tanto a separação ou talvez fosse por isso que a ânsia de voltar era sempre maior que tudo. Chegou atrasado mas feliz e satisfeito. Ninguém tem a capacidade de incomodar um homem feliz dizia ele para consigo sempre que o olhavam de lado, não tinha horas para entrar, não tinha horas para sair, tinha trabalhos para cumprir e era suficiente.


Quando se mudara para Lisboa não fazia ideia que ali ia ficar tanto tempo, na verdade nunca quis ir viver para lá, achava uma cidade suja, louca e sem charme, nada comparado com a sua mediana cidade à beira mar plantada mas de todas as suas opções aquela foi a única em que conseguiu entrar. No dia em que se mudou para aquele pequeno quarto universitário que a bolsa lhe destinara jurou a si mesmo que a causa era boa, que seriam só alguns anos e que voltaria tão rápido como saiu. Tinha que o fazer, afinal quem iria percorrer todas as verdades da vida, todas as intrigas politicas, todos os mistérios de um país?

Naquele dia, a mãe chorou pois sabia que aquele sangue na guelra de pequeno pintainho iria arrefecer, se calhar até ia gostar da capital, se calhar até arranjava lá trabalho o que tinha de certo era que ele não voltava. Ele por seu lado, com o mesmo sangue na mesma guelra disse para consigo que se despacharia, ela não podia ficar sozinha, deu-lhe um beijo na testa e disse-lhe:

- Então mãe, que raio, não tarde desidrata com tanto choro, eu vou mas eu volto, prometo!

Ela enxugou as últimas lágrimas e abanou a cabeça em sinal de concordância, inspirou bem fundo para que o cheiro dele se mantivesse por mais tempo.

- Vai e volta quando der, não te apresses e não te desvies do teu caminho.

Manuel foi o ultimo a entrar no autocarro, prometeu ligar quando chegasse e de peito feito partiu antes que só quisesse ficar.

Marília, viu o seu menino subir e sentar-se na janela, foi forte e sorriu de volta, sentiu um enorme orgulho naquele que contra tanta adversidade conseguiu ser um bom menino, estudou tanto que conseguiu uma bolsa de estudo. Viu o autocarro partir, rezou qualquer coisa para que tudo lhe corresse bem, que deus o protegesse.

O autocarro fez a curva, o cheiro dele foi substituído pelo ar quente e pegajoso do gasóleo da auto via e ela chorou, sem saber bem porquê, chorou de saudade, de preocupação, de amor que só uma mãe tem pelo seu filho e depois foi-se embora.



Continua...

You Might Also Like

0 comentários

A vossa opinião é importante

@carpideira.euforica_blogue